Políticas Públicas e Inclusão Digital

tipo: Documentos
publicado em: 29 de maio de 2007
por: Carlos A. Afonso
idiomas:
Carlos A. Afonso* - 29 de maio de 2007
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2006

"A inclusão digital está em ações pontuais do governo federal, mas com pouca integração entre os projetos em curso. O Brasil precisa de uma política pública unificada que inclua a cidadania na sociedade da informação."
Carta de Porto Alegre, V Oficina de Inclusão Digital, junho de 2006.

Resumo de um diagnóstico
Uma estratégia brasileira de inclusão digital enfrenta desafios, como um grande espaço a cobrir, que não se mede somente por geografia (8,5 milhões de km2) e demografia (188 milhões de habitantes). Por outro lado, os dispêndios de políticas públicas na alavancagem das TICs para o desenvolvimento humano não são custos, são investimentos essenciais. Não é preciso discutir quão importante é o acesso às TICs para a alavancagem econômica e social (e também cultural), contribuindo significativamente para saltos de etapas nas possibilidades de desenvolvimento local e participação no conjunto da economia nacional.

Considere-se ainda que há muitas iniciativas que nasceram dos governos, das ONGs, do setor privado, e mesmo da academia, muitas delas tendo contribuido para pelo menos servir de exemplo de boas práticas para uma estratégia abrangente. Pode-se citar, entre outras: telecentros nas comunidades mais carentes; conectividade subsidiada via satélite (GESAC) para escolas, serviços públicos e telecentros; iniciativas exemplares de municípios digitais (Sud Mennucci, Piraí e outras); extensos programas de eletrificação por painéis fotovoltáicos em escolas rurais (PRODEEM); implantação de uma política de governo que prioriza padrões abertos e software livre; ações de e-governo a níveis federal e estadual, inclusive serviços online, padronização e interoperabilidade de sistemas (arquitetura e-PING); consolidação de uma extensa e avançada rede nacional de ensino e pesquisa (RNP); sistema de governança da Internet no país pluralista, transparente e considerado mundialmente como uma referência de eficácia e qualidade.

No entanto, mesmo que várias iniciativas nacionais no campo das TICs estejam entre as melhores do mundo, o Brasil ainda carece de uma estratégia unificadora que aprofunde e democratize amplamente os benefícios das novas tecnologias. Alguns pontos que mostram a necessidade urgente de uma estratégia governamental (coordenada nos seus três níveis) com resultados significativos no curto prazo, com a ajuda das estatísticas do CGI.br e de outras entidades são:

1. Mais de 2.400 municípios descartados pelas empresas privadas de telecomunicações e de serviços internet, onde só há telefonia fixa (estritamente porque as cláusulas de universalização das concessões assim o exigem). Nesses municípios, com mais de 22 milhões de pessoas e correspondendo a mais de 44% dos nossos 5.564 municípios, não há serviço local de celular, nem acesso local à internet. Esses municípios são justamente os que mais necessitam de alavancagem econômica e social. Esses municípios estão em todos os estados, mas especialmente no Norte e Nordeste, condenados pelas concessionárias de telecomunicações à desconexão eterna.

2. Conectividade nula ou muito precária em quase todas as nossas áreas rurais. Quem não tem recursos econômicos para uma conexão via satélite, está também condenado à desconexão eterna. E sabemos que a conexão via satélite é limitada e, da forma como é distribuida (ponto a ponto), é muito cara em relação à banda oferecida, além de a qualidade do serviço ser vulnerável a intempéries (especialmente na banda Ku). Em resumo, uma conexão via satélite é cara e não é "à prova de futuro".

3.
Milhares de bairros das cidades maiores também abandonados por razões de mercado pelas concessionárias, onde não há nenhum serviço de "banda larga". Nesses bairros, em que ela é essencial, como em todos os outros municípios e nos bairros mais pobres de todo o Brasil, não há como instalar centros de acesso coletivo à internet ou como conectar um projeto local de inclusão digital se não for via satélite. Esses bairros ou cidades-satélites estão em todas as cidades brasileiras, inclusive nas mais avançadas em termos de serviços internet, como Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo.

4. Mais de 33 milhões de crianças na escola fundamental e cerca de 10 milhões no ensino médio, em cerca de 160 mil escolas públicas. Não há na quase totalidade delas acesso à internet, ou mesmo equipamento de informática adequado para permitir o acesso quando ele existir. É constrangedor, especialmente para um país que tem mais de US$ 3 bilhões acumulados em um fundo de universalização de acesso (FUST), que tenhamos conectividade em menos de 8% de nossas escolas públicas.

5. Mais de 50% das famílias brasileiras vivem com menos de dois salários mínimos por mês. Cerca de 30% de nossas famílias não têm condição de adquirir um microcomputador, a menos que seja a preço simbólico ou 100% subsidiado. Mas, mesmo assim, as despesas adicionais de uma família para possuir um microcomputador hoje em dia, em que é inevitável conectá-lo à internet, fazem com que o aparelho possa criar mais problemas que soluções para os lares mais pobres, devido ao custo elevado da conexão via telefone e consumo adicional de energia.

Tópicos para uma estratégia nacional
O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, não pode mais contentar-se com referências de países subdesenvolvidos no campo da inclusão digital. Nosso estágio e recursos disponíveis são outros, nossa qualificação para fazer muito melhor é inegável. No entanto, nosso planejamento estratégico, pelo menos nesta área, este sim, parece ser de país miserável, especialmente quando deixado apenas a instâncias de governo que operam de modo fechado, sem diálogo com a sociedade, e afetadas por divergências internas.

Agravando a situação, há estruturas legais e institucionais conflitivas e desatualizadas, que dificultam ou impedem o investimento de recursos públicos em ações concretas - levando frequentemente à prática impossível de políticas públicas sem recursos públicos. Como apenas um exemplo, o Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações (FUST) é na prática restringido pela Lei Geral das Telecomunicações (LGT) e por uma regulamentação que parece intencionalmente criada para que o fundo não seja utilizado.

Uma estratégia abrangente e unificadora para a alavancagem das TICs para o desenvolvimento humano em todo o país deve trabalhar com um conjunto de objetivos centrais definidos por amplo consenso. Abaixo está uma visão de alguns objetivos prioritários para essa estratégia.

1. Garantir que em cada município haja um ponto de presença de espinhas dorsais nacionais de fibra óptica (PdP), de alta velocidade, ou uma extensão direta de um PdP, suficiente para assegurar conectividade de qualidade para uso de multimeios a todas as áreas do município.
Um PdP de fibra óptica pode fornecer a velocidade de transmissão desejada em qualquer escala (estamos falando em alguns casos de centenas de Gb/s), velocidade que depende apenas dos equipamentos de iluminação, controle e transporte de dados nas pontas da fibra - facilitando as atualizações técnicas para suprir aumento de demanda. Este objetivo requer um projeto técnico detalhado que procure combinar PdPs com extensões (de fibra ou rádio digital), alcançando todas as sedes de municípios.

A partir das sedes municipais, redes municipais, desenvolvidas pela iniciativa local e com o apoio de uma estratégia nacional unificada, podem distribuir a conexão vinda do PdP a todas as áreas do município (distritos urbanos, áreas rurais, conexão a postos de saúde, hospitais, escolas, telecentros, bibliotecas públicas, centros administrativos governamentais etc.), bem como prover serviços de conectividade a usuários individuais e pessoas jurídicas. Deste modo seriam combinadas redes comunitárias locais com uma rede nacional de alta velocidade garantido o melhor benefício/custo para cada usuário e qualidade uniforme de conexão em todo o pais.

Para isso, é essencial um projeto técnico nacional que otimize a distribuição dos PdPs acima descritos. Em muitos municípios hoje ainda não se justifica uma extensão de fibra com equipamento de alta velocidade - mas esse projeto técnico definirá PdPs adequadamente localizados, a partir dos quais os municípios próximos serão alcançados por um ou mais enlaces de rádio digital de alta velocidade (pode-se obter 200 Mb/s em cada enlace, nos padrões atuais de rádios digitais comerciais) ou mesmo ramos locais de fibra em velocidades inicialmente menores.

É crucial garantir velocidade para o uso das várias facilidades da internet (incluindo uso eficaz de multimeios) em todos os municípios - o ensino à distância de qualidade, as aplicações médicas e os projetos culturais dependem disto -, e não simplesmente adotar um padrão de velocidade de hoje que amanhã estará obsoleto - é preciso uma política pública nacional de democratização da conectividade "à prova de futuro", e não apenas um "plano de banda larga" cujo alcance, eficácia e longevidade ficam em dúvida.

2. Priorizar o apoio na ponta (municípios) a iniciativas abrangentes de inclusão digital que integrem as distintas iniciativas e necessidades locais em uma rede comum, otimizando custos de conectividade e melhorando a qualidade dos serviços de acesso.
Em resumo, a estratégia nacional apoiará o desenvolvimento de municípios digitais - redes comunitárias abrangentes conectando serviços públicos, escolas, telecentros, postos de saúde, em áreas urbanas e rurais, bem como para uso privado. Estas iniciativas, beneficiando-se de milhares de experiências similares já bem conhecidas no país e no mundo, não só reduzem custos de conexão e comunicação como melhoram em muito a qualidade de serviço.

Devido à grande assimetria na distribuição de recursos de conectividade no país, prioridade especial deverá ser garantida na estratégia nacional aos mais de 2.400 municípios que hoje não têm acesso algum a um ponto de presença local das espinhas dorsais. Todos estes já podem "nascer para a internet" com redes comunitárias bem conectadas.

Idealmente, o resultado estratégico deste plano faria com que a infra-estrutura de internet no Brasil viesse a ser um conjunto interconectado de redes municipais de alta velocidade.

3. Garantir pelo menos o acesso coletivo na ponta (através de iniciativas locais de telecentros comunitários apoiadas por uma política nacional) em todas as áreas urbanas de menores recursos. Buscar formas de estender o alcance das redes comunitárias à população rural.
A realização deste objetivo pode significar a implantação, em parceria entre governos e comunidades locais, de mais de 10 mil telecentros comunitários. Vale notar que o plano atual de inclusão digital da Bolívia contempla a instalação de dois mil telecentros para uma população de cerca de 11 milhões de habitantes - se a escala fosse repetida no Brasil, estaríamos falando de mais de 30 mil telecentros. São conhecidas muitas iniciativas governamentais de implantação de telecentros comunitários - a maioria delas atuando em paralelo, sem uma estratégia comum.

4. Evitar, com legislação adequada, que se criem "capitanias" de telecomunicação e de transmissão de dados para satisfazer apenas o mercado.
Os cartéis de telecomunicações hoje disputam o mercado dos que já estão conectados e que podem pagar as mensalidades relativamente elevadas (muito mais caras que na Europa ou nos EUA) para ter acesso a conexões de "banda larga". Nesse cenário, todos os outros usuários estarão, pelo mercado, condenados à desconexão eterna, e o país condenado ao aprofundamento da brecha digital. Há que garantir o ambiente competitivo em que empreendedores locais ou regionais possam utilizar plenamente as novas tecnologias de comunicação sem fio para oferecer alternativas de conectividade com o apoio de políticas públicas que garantam uma sinergia com as iniciativas municipais, em benefício mútuo.

5. Garantir que no menor prazo possível todas as escolas públicas estejam bem conectadas (e permanentemente conectadas!) à internet.
Esta era uma das prioridades centrais da política inicial de utilização dos recursos do FUST, que acabou não sendo implementada. Não basta definir um plano nacional de democratização do acesso em alta velocidade e a implantação de redes comunitárias. É preciso enfatizar a prioridade central de garantir a curto prazo que as escolas públicas brasileiras ganhem acesso à internet. Nossa distância de países como a Coréia do Sul é sideral e aumenta rapidamente - mas também aumenta em relação a países de menor desenvolvimento. Há que buscar meios de conectar todas as escolas a curto prazo enquanto se implanta o sistema ideal de redes municipais interconectadas em alta velocidade.

6. Garantir conectividade a todos os serviços de saúde pública, segurança e administração municipal.
Tal como a conexão para as escolas públicas, esta era outra das prioridades centrais da proposta abandonada de utilização do FUST. Do mesmo modo que no caso das escolas, estes serviços não podem esperar que a rede ideal chegue à porta. É preciso buscar meios de conectá-los, mesmo que em forma limitada, enquanto uma alternativa mais eficaz não chega.

7. Assegurar a utilização de sistemas e padrões abertos, para reduzir a um mínimo a dependência de sistemas e softwares proprietários ou com problemas de interoperabilidade.
O Brasil já é reconhecido mundialmente como um dos países que tem feito uma tentativa ampla de adoção de software livre e padrões abertos na esfera pública federal. As razões dessa política valem para todas as esferas de governo, e uma estratégia nacional de TICs não poderia deixar esta prioridade de lado. No entanto, a iniciativa ainda se ressente de uma coordenação mais sólida, e ainda se vêem serviços federais de e-governo operando com sistemas proprietários em casos em que claramente existe uma alternativa de software livre com a mesma ou melhor qualidade.

8. Generalizar os serviços e sistemas de e-governo a todas as instâncias da administração pública, usando critérios de transição que levem em conta a brecha digital, com critérios rigorosos de interoperabilidade, padrões abertos, transparência e eficácia.
Também neste aspecto, o governo federal e alguns estados (bem como alguns municípios) têm sido reconhecidos como exemplos dessa política. É importante que essa prática, combinada com a efetiva universalização do acesso à internet seja generalizada com qualidade e eficácia.

9. Montar uma estratégia nacional de capacitação para que, em todos os níveis, pessoas e instituições, tendo o acesso aos meios e instrumentos, possam utilizá-los com eficácia.
Um dos erros frequentemente cometidos nos programas sociais e educacionais de TICs no país é iniciar (e muitas vezes terminar) um projeto pela aquisição e doação de equipamentos. Além da universalização do acesso aos meios (conectividade) e da democratização do acesso aos instrumentos (equipamento), é essencial a disseminação das habilidades para melhor utilizar esses meios e instrumentos.

10. Promover a curto prazo a adequação da lei e regulamentação do FUST, bem como criar um mecanismo pluralista de governança para o fundo.
É inegável que o Brasil, mesmo considerando sua escala, já tem um acúmulo excepcional de recursos financeiros para promover a alavancagem das TICs para o desenvolvimento humano. No entanto, as amarras legais e uma atitude de governo que relega a segundo plano a relevância da inclusão digital têm impedido a utilização desses recursos. É essencial que o processo decisório de uso dos recursos do fundo seja pluralista, transparente e democrático. É também fundamental que a prioridade no uso desses recursos seja garantida a projetos inovadores originados nas comunidades ou com a participação destas. A estratégia nacional de TICs deverá, por fim, combinar o uso ótimo dos recursos do fundo com outras fontes de recursos.


Referências:

Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações):
http://www.anatel.gov.br

IBICT - Mapa de Inclusão Digital/ Digital Inclusion Map:
http://inclusao.ibict.br/

Ministério das Comunicações:
http://www.mc.gov.br

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação:
http://www.mct.gov.br

Ministério do Desenvolvimento Social:
http://www.mds.gov.br

Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior:
http://www.desenvolvimento.gov.br

Comitê Gestor da Internet no Brasil:
http://www.cgi.br

Programa Computador para Todos:
http://www.computadorparatodos.gov.br

Recondicionamento de computadores:
http://www.governoeletronico.gov.br/projetoci

Quiosque do Cidadão:
http://www.integracao.gov.br

Proinfo:
http://www.proinfo.mec.gov.br

SECTI - Bahia:
http://www.secti.ba.gov.br

Programa Estação Digital:
http://www.fundacaobancodobrasil.org.br/estacaodigital

Telecentros de Informação e Negócios:
http://www.telecentros.desenvolvimento.gov.br

Telecentros Banco do Brasil:
http://www.bb.com.br/appbb/portal/bb/id/index.jsp

Telecentros de São Paulo:
http://telecentros.sp.gov.br

Telecentros de Porto Alegre:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br
http://www.telecentros.com.br

Casa Brasil:
http://www.brasil.gov.br/casabrasil

Pontos de Cultura:
http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes

Espaço Serpro Cidadão:
http://www.serpro.gov.br/cidadao

Centros Vocacionais Tecnológicos:
http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/11471.html

Telecentros da Pesca:
http://tuna.seap.gov.br/seap/telecentro

Carlos A. Afonso é um dos representantes das organizações não governamentais sem fins de lucro no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de planejamento da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits).

Como citar este artigo:
AFONSO, Carlos A. Políticas Públicas e Inclusão Digital. In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2006 . São Paulo, 2007, pp. 47-53.