Banda larga: Direito humano ou mercadoria?

tipo: Documentos
publicado em: 04 de junho de 2008
por: Gustavo Gindre Monteiro Soares
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Gustavo Gindre Monteiro Soares* - 04 de junho de 2008
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2007

A pesquisa "TIC Domicílios e Usuários" do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) vem se consagrando como uma das mais importantes e confiáveis ferramentas para a construção de indicadores sobre, principalmente, a penetração do uso da Internet no Brasil. Sua versão 2007, em comparação com o ano anterior, demonstra que o país deu um salto nas metas de inclusão digital, mas também permite concluir que ainda temos gargalos que se mostram quase intransponíveis se forem mantidos os atuais rumos das políticas públicas. Ou seja, o crescimento percebido pela pesquisa deve, em breve, encontrar as barreiras de exclusão social que limitam drasticamente o consumo no Brasil.

Vejamos.

Em 2006, 20% das residências brasileiras possuíam um computador. Um ano depois o percentual subiu para 24%. O crescimento foi significativo entre aqueles de menor renda. Em 2006, apenas 3% das residências com ganhos familiares entre R$ 300,00 e R$ 500,00 tinham um desktop. No ano seguinte, 9% das famílias com renda entre R$ 381,00 e R$ 760,00 já contavam com um computador em casa. Crescimento espetacular de 200% em um ano. E ainda que não haja elementos concretos para fazer essa vinculação, é razoável supor que tal diferença seja conseqüência direta do programa Computador para Todos, do Governo Federal 1 .

Mesmo assim, esta porcentagem é aproximadamente sete vezes menor do que aquela das residências com computadores nas famílias que ganham entre R$ 1.901,00 e R$ 3.800,00: exatos 66%.

As diferenças regionais também se mantêm consideráveis. Em 2007, 30% dos domicílios da região sudeste contavam com um computador, enquanto no nordeste o número era de apenas 11%.

Internet

Sem dispor de estímulos semelhantes ao do Computador para Todos, o acesso à Internet teve crescimento muito mais modesto. Em 2006, 14% das residências dispunham de conexões. Em 2007, o número encontrado pela pesquisa do CGI.br foi de 17%.

E novamente podemos perceber brutais distorções regionais e de renda. No sudeste, 22% dos domicílios conseguem acessar a rede mundial de computadores, enquanto que na região norte o número cai para 5%, o que representa uma diferença de mais de 300% entre uma região e outra.

Das famílias com renda entre um e dois salários mínimos, somente 4% podem utilizar a Internet em casa, enquanto 54% daqueles que vivem com rendimento entre cinco e 10 salários mínimos têm esta mesma facilidade.

Outra conseqüência possível de ser extraída dessa valiosa pesquisa é perceber que, na faixa entre um e dois salários mínimos, 9% das famílias têm computador, mas somente 4% usam a Internet. Já na de cinco a 10 salários mínimos, 63% possuem computadores de mesa e 54% fazem uso da Internet. Isso significa que, no primeiro segmento, 56% das residências com computador não acessam a Internet e, no segundo segmento, este número cai para apenas 14% dos domicílios.

Banda larga

Por fim, é importante qualificar a utilização da Internet. Em 2006, 49% das residências com Internet faziam uso do acesso discado, cerca de 40% dispunham de uma conexão dedicada (DSL, cabo, satélite e rádio) e outros 9% não souberam informar qual a tecnologia usada na sua conexão. Em 2007, o acesso dedicado avançou para 50%, deixando a linha discada com 42% e 8% que não informaram o tipo de conexão disponível em suas casas.

Um percentual alto dos usuários (16%) não soube informar a velocidade nominal 2 de suas conexões. E 45% dispõem de acessos com até 128 Kbps. No mundo do vídeo por IP, da webrádio, do VoIP e dos downloads em profusão, é justo pensar que uma conexão nominal inferior a 600 Kbps (com muito boa vontade!) não pode ser considerada realmente como sendo de "banda larga". Ocorre que somente 10% daqueles que têm Internet em casa afirmaram dispor de velocidades iguais ou superiores a 600 Kbps. Na região norte do Brasil, esse percentual cai para algo em torno de zero!

O verdadeiro gargalo

O grande valor desta pesquisa do CGI.br é demonstrar com números que a inclusão digital esbarra, e não ultrapassa, a exclusão econômica de boa parte de nossa população. Os 10% de domicílios que possuem banda larga equivalem à cerca de 10% de residências que assinavam um serviço de TV paga no último trimestre de 2007 3 . De fato, são até bem mais numerosos do que os 0,7% que lêem os cinco maiores jornais do Brasil 4 ou o 1% de brasileiros que compram as três principais revistas semanais de informação 5 .

Caso as políticas para inclusão digital se mantenham no interior dos limites traçados pelo mercado, confiando que será possível tratar a todos(as) como consumidores de um serviço pago, então a inclusão digital do conjunto da população brasileira será sempre um sonho distante.

Isso porque, no século XXI, é preciso garantir acesso ao conhecimento para superar a exclusão econômica e social. Portanto, a inclusão digital é pré-condição para a superação das desigualdades. E, conformando um circulo vicioso e perverso, a inclusão digital através do mercado esbarra justamente no fato de que tais desigualdades econômicas impedem que boa parte da população brasileira possa aceder ao patamar de consumidor de um serviço de Internet. Ou seja, não possuem recursos para contratar um serviço de acesso e sem o acesso não dispõem do conhecimento necessário para melhorar sua renda.

Como romper esta dinâmica, então?

Comunicação como direito humano

O primeiro passo é reconhecer que a comunicação (especialmente aquela de caráter dialógico como a disponibilizada pela Internet) é um direito humano inalienável e, tal como a saúde e a educação, deve ser ofertada a todos(as) o(a)s brasileiros(as) independente de poderem ser consumidores de um provedor pago. Assim, o acesso banda larga a Internet deve ser considerado um serviço público passível de ser universalizado pelo Estado. Da mesma forma como no Sistema Único de Saúde (SUS), a iniciativa privada deve cumprir um papel complementar às metas de universalização. Mas, para além das opções de mercado, deve sempre existir a oferta pública do acesso.

Três medidas são fundamentais para materializar uma política como esta. Em primeiro lugar, é preciso construir uma infra-estrutura pública de comunicação, capaz de ofertar o acesso aos hipossuficientes economicamente. Hoje, o Estado brasileiro já possui uma malha de fibras ópticas que percorre todo o país. Basta que a gestão dessa rede seja unificada (na forma de um único backbone) e colocada a serviço de um projeto de universalização da banda larga. Também seria necessário utilizar os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) 6 para construir o ponto de presença dessa rede ("backhaul") em cada cidade brasileira.

Em segundo lugar, é preciso estimular a construção de redes locais comunitárias que se interconectem à infra-estrutura ofertada pelo Governo Federal. Estas redes podem ser geridas por conselhos, integrados pelo poder público e por representantes da sociedade civil. Sua malha será composta por um mix de tecnologias (wifi, wimax, mesh, fibra, PLC, etc), adaptado a cada específica realidade local. Essa rede poderá tanto conectar os prédios públicos (secretarias, hospitais, centros comunitários, escolas, bibliotecas, etc) quanto as próprias casas dos moradores (como já fazem a paulista Sud Mennucci e a fluminense Duas Barras) e as pequenas e médias empresas locais.

Sem fins lucrativos, tanto a infovia federal que percorre o país quanto as redes locais teriam que auferir de suas operações apenas o necessário para manutenção e ampliação da infra-estrutura.

Desagregação estrutural

Em terceiro lugar, também se faz necessário tomar medidas internas ao próprio funcionamento do mercado, gerando concorrência e ampliando o alcance da conexão privada (que, contudo, jamais se universalizará, como vimos acima). A mais importante destas medidas é a desagregação estrutural das redes, separando a figura do operador de rede (que ficaria impedido de vender serviços ao usuário final, seja ele empresarial ou residencial) da figura do provedor de serviços. Assim, uma mesma infra-estrutura poderia ser usada por vários provedores, em livre concorrência entre si. A existência, ou não, da desagregação talvez explique a diferença de preços no acesso entre Londres (1 Kbps = R$ 0,01) e Salvador (1 Kbps = R$ 0,16). A variação de 1.600% no valor do acesso provavelmente se origina no fato de que, na capital inglesa, a antiga incumbent (British Telecom) foi obrigada a criar uma nova empresa (Open Reach), que vende o acesso da infra-estrutura a qualquer concorrente da própria BT, a preços regulados e não discriminatórios. Enquanto que os soteropolitanos só podem contratar o serviço da Oi, dona da rede e única provedora de banda larga.

Governo na contramão

Infelizmente, o Governo Federal parece seguir um caminho bem diferente deste apontado acima, confiando que a inclusão digital se fará a partir do monopólio regional das operadoras privadas.

A recente obrigação contratual de construção do backhaul das operadoras de telecomunicações em todas as cidades brasileiras (Decreto Presidencial 6.424/2008) não aponta a obrigação de parte da capacidade deste backhaul ser vendida a terceiros. Ele será, portanto, para uso exclusivo das teles. O mesmo ocorre com a rede de "última milha" que as teles construirão para conectar (graciosamente...) as 56 mil escolas públicas urbanas do país.

Some-se a isso o fato de que, quando escrevo este artigo, estamos às vésperas da fusão entre Oi e Brasil Telecom, e veremos que 26 dos 27 estados brasileiros estarão nas mãos de um monopólio privado, cujos proprietários serão uma empreiteira e um dono de shopping centers. Já o Estado de São Paulo permanecerá por conta de uma transnacional das telecomunicações. Sem demérito para estas empresas, é óbvio que elas percebem a conexão banda larga não como um serviço essencial passível de ser universalizado, inclusive para aqueles que não podem pagar, mas como um negócio extremamente lucrativo, mantido sob regime de monopólio regional da infra-estrutura e que estará sempre disponível para aqueles, e somente para aqueles, que puderem pagar.

Uma política de estímulo ao monopólio privado regional da infra-estrutura dos backbones tende a reproduzir no acesso banda larga o mesmo modelo excludente que está na base da formação da sociedade brasileira. E como estamos falando de conhecimento (insumo básico para o desenvolvimento das sociedades no século XXI), esta política pode ter como conseqüência o agravamento da exclusão.

Trata-se, portanto, de escolher entre um modelo que entende a comunicação como um direito humano inalienável e outro que a percebe como uma mercadoria. Ao Governo e à sociedade brasileira cabem a escolha...

1 Pacote de subsídios e renúncia fiscal para a produção de computadores de mesa que utilizem softwares livres e que custem até R$ 1.400,00.
2 Na prática, as velocidades disponíveis podem ser bem menores do que aquelas contratadas. Em geral, as empresas que fornecem o acesso garantem uma velocidade real de 10% do valor nominal.
3 Segundo a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA).
4 Dados obtidos no site da Associação Nacional dos Jornais (ANJ).
5 Conforme a Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER).
6 Fundo constituído por 1% do faturamento das empresas de telecomunicações.

* Gustavo Gindre Monteiro Soares é representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil

Como citar este artigo:
SOARES, Gustavo Gindre Monteiro. Banda larga: Direito humano ou mercadoria? In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2007 . São Paulo, 2008, pp. 41-45.