publicado em: 01 de abril de 2006
por: Marcelo Bechara
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Fonte: Pesquisa sobre o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil 2005
Tratar a inclusão digital no Brasil sob o seu aspecto legal traz ao debate pelo menos dois questionamentos fundamentais que, apesar de não serem novos (e para mim já superados), merecem sempre atenção especial, haja vista discursos polêmicos dos menos preparados. O primeiro é a importância do tema como questão essencial diante de outras mazelas sociais em princípio mais emergentes, tais como a miséria, a fome e o desemprego. O outro diz respeito ao arcabouço jurídico sustentador de argumentos que possibilitem a plena concretização do processo de erradicação da exclusão digital como política de estado e de governo.
Em verdade, não é de hoje que o Direito corre atrás da Tecnologia. Giancarlo Taddei Elmi, Mário G. Losano e outros juristas italianos da escola de Florença desenvolveram conceitos como “Informática Jurídica” e a “Juscibernética”. Na prática, o que se estudava naquele momento (década de setenta) eram as aplicações tecnológicas no exercício das atividades jurídicas. Naturalmente, a coisa evoluiu e hoje a concepção jurídico-tecnológica ganhou proporções bem mais sólidas, mormente com a explosão da Internet a partir de meados da década de noventa.
Em relação especificamente aos Direitos Humanos, não poderia ser diferente. Em 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, o jurista Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão “gerações de direitos do homem”, buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).
De acordo com o referido jurista, a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté). A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité). Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité).
O professor e Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade, durante uma palestra que proferiu em Brasília, em 25 de maio de 2000, comentou que perguntou pessoalmente para Karel Vasak por que ele teria desenvolvido aquela teoria. A resposta do jurista tcheco foi bastante curiosa: “Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu de fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa”.
O que se percebe, de fato, é que tal divisão é meramente didática, não sendo razoável do ponto de vista histórico separar os direitos humanos em gerações. Até porque, sem muito critério, novas gerações foram acrescidas à tríade inicial, destacando-se a quarta, desenvolvida pelo Professor Paulo Bonavides, um dos maiores especialistas no assunto. Para o grande constitucionalista, o direito à democracia (direta), o direito à informação e o direito ao pluralismo comporiam a quarta geração dos direitos fundamentais.
Para Hugo César Hoeschl, por sua vez, em “O Conflito e os Direitos da Vida Digital”, “Já se fala em direitos de quarta, quinta, sexta e até sétima gerações, surgidas com a globalização, com os avanços tecnológicos (cibernética) e com as descobertas da genética (bioética)”. Já José Alcebíades Junior definiu a quinta geração como aquela que trata dos direitos da realidade virtual, “que nascem do grande desenvolvimento da cibernética na atualidade, implicando no rompimento de fronteiras tradicionais, estabelecendo conflitos entre países com realidades distintas, via Internet, por exemplo”.
Entretanto, deixando o debate doutrinário de lado, vez que dispensável, melhor fonte não há em busca das respostas que precisamos senão a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, exteriorizada em Paris no ano de 1948, obviamente antes de qualquer celeuma nos termos aduzidos acima.
Fazendo uma leitura objetiva da norma, alguns dispositivos saltam aos olhos pela sua atualidade, apesar do texto existir há mais de 50 (cinqüenta) anos. De pronto, identificamos o art. 19 que traz em seu bojo elementos importantes para a presente discussão, senão vejamos:
Artigo 19 - “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”
Ora, não é preciso muito esforço para logo identificar a presença da Internet neste artigo. Afinal de contas, a grande rede é indubitavelmente o maior meio de informação que a humanidade concebeu capaz de romper fronteiras.
E é nesse aspecto que a inclusão digital se insere no contexto ora apreciado. Isso porque antes da existência da Internet, mesmo em 1948, já havia uma consciência em relação ao direito de informação. E não há como se desassociar a informação de sua evolução de disponibilidade e acesso. O art. 19 que mundialmente é mais conhecido pela liberdade de expressão e opinião garantiu, ainda, o acesso e a transmissão de informações e idéias, sem restringir o meio, nem barreiras geográficas. Logo, todo homem não só tem o direito de se expressar, bem como de ter acesso e transmitir informações seja por meio físico ou eletrônico.
E não se esgota a reflexão ora proposta apenas nesse dispositivo. O art. 27, por sua vez, traz mais um importante direito ao homem, a saber:
Artigo 27 - “I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus
benefícios.
II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”
Ora, resta claro que a Declaração Universal dos Direitos do Homem garantiu não somente o direito à informação, bem como a fruição das conquistas da evolução tecnológica de modo que a humanidade possa compartilhar de seus benéficos.
A Constituição da República de 1988 contemplou uma série de dispositivos inspirados diretamente na Declaração de 1948, mormente nas garantias fundamentais do consagrado art. 5o. É lá que encontramos, por exemplo, a garantia ao acesso de informação, além da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Já o art. 219 é contundente ao estabelecer em relação à Ciência e Tecnologia que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.”
Diante disso, podemos concluir que a inclusão digital está plenamente prevista em nosso ordenamento jurídico, devendo o estado promover todas políticas que incentivem sua expansão.
Os indicadores divulgados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) deixam claro que há no país um espaço muito grande para o crescimento do acesso e uso do computador e da Internet. Apenas 12,93% dos domicílios brasileiros têm acesso à grande rede, sendo 9,39% da proporção de indivíduos com acesso à Internet no domicílio.
Outro aspecto relevante é que a conexão discada (via modem dial-up) é ainda esmagadoramente maior do que acessos por banda larga, representando uma total de 39,49% sobre o total de usuários de Internet no próprio domicílio.
E é por isso que apesar de todas as dificuldades sociais enfrentadas pelo país no campo do desemprego e da fome, a educação é sem dúvida alguma a grande ferramenta de inclusão social. E não dá para falar em educação, sem capacitação tecnológica dos usuários, bem como de fruição de acesso às novas tecnologias, seja pela universalização dos serviços de telecomunicações ou pelo incentivo à implantação de terminais de acesso, telecentros, etc.
Entendendo a importância deste mecanismo para o desenvolvimento do país, o Poder Executivo editou o Decreto de n.º 5.581, de 10 de novembro de 2005, incumbindo ao Ministério das Comunicações a formulação e proposição de políticas, diretrizes, objetivos e metas, bem como exercer a coordenação da implementação dos projetos e ações respectivos, no âmbito do programa de inclusão digital.
Desta forma, fica evidente que a inclusão digital é parte indissociável da inclusão social e de outros programas sociais do país, devendo ser tratada de forma especial pela sua relevância. O Brasil já tem subsídios legais mais do que suficientes para trabalhar a questão de forma madura e o CGI.br é entidade fundamental nesse processo, seja pela sua legitimidade, seja pela sua representatividade. Assim, a instituição tem, além do conhecimento, os números e o mapeamento que possibilitam a tomada de decisões
estratégicas pelo Poder Público.
Passada meia década em que os direitos “universais” de todo homem foram declarados, sua materialização e plena conquista dependem da inserção de cada ser humano na sociedade da informação. O professor emérito da Universidade de Frankfurt, Jürgen Habermas, reconhece que a Declaração de 1948 remete a uma ordem global e que a
constituição de um direito cosmopolita permanece ainda muito distante. Contudo, os direitos humanos oferecem à política de comunidade das nações a única base de legitimação que é reconhecida por todos, vez que quase todos os estados reconhecem literalmente a Carta dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
Para o inquieto filósofo espanhol Manuel Castells, “todo mundo deveria ter direito a utilizar a Internet e ninguém deveria ser penalizado por questões de geografía ou de dinheiro. Além disso, há outros elementos que fazem com que a divisão digital subsista.
Um deles é a velocidade na Internet, e outro é a forma como aqueles que estão no ciberespaço dão forma à Web segundo sua própria imagem. Quanto mais a democratização da Internet demorar, mais a Web se desenvolverá em torno de valores que não são aqueles do conjunto da sociedade. A difusão da Internet sobre o conjunto do planeta exigirá forte ação dos Estados, com ações públicas nacionais e internacionais. As diferenças culturais, financeiras e de infraestrutura são hoje tais que podemos ter um terço do planeta estruturado ao redor da Internet e dois terços excluídos, com tudo o que isso significa em termos de acesso à informação ou aos recursos empresariais. O desenvolvimento da Web, que era exponencial, encontra nessa realidade o seu limite”.
Diante do exposto, compreendemos que qualquer política de inclusão digital não é nada mais do que a garantia plena de uma conquista há muito consolidada internacionalmente. Em verdade, todas as garantias fundamentais da Constituição influenciadas pelo texto de 1948, mesmo as que aparentemente não tenha correlação com o processo de inserção na sociedade da informação, só podem ser plenamente alcançadas dentro de um contexto de mundialização e convergência digital, a partir da compreensão de que os avanços tecnológicos devem ser compartilhados entre todos, sob pena dos direitos mais personalíssimos do ser humano restarem cada vez mais distantes.
* Marcelo Bechara é consultor jurídico do Ministério das Comunicações e conselheiro do CGI.brComo citar este artigo:
BECHARA, Marcelo. A inclusão digital à luz dos direitos humanos. In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2005 . São Paulo, 2006, pp. 33-37.