Confusões na Web brasileira - O que é que está acontecendo na Internet no Brasil?
Raphael Mandarino
Presidente da Associação Nacional dos Usuários de Internet (Anui) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil
De repente, sem mais nem menos, vemos uma série de eventos, aparentemente desconexos, atropelarem como um vendaval a calmaria próspera da Internet brasileira. São ações, indagações, insinuações e, por que não dizer, denúncias que à primeira vista preocupam, pois são apresentadas revestidas de "boas intenções" por proeminentes membros da comunidade científica e empresarial.
Variam os interlocutores e a forma do ataque, mas a tônica e o objetivo são sempre os mesmos. Por alvo mais evidente temos a Fapesp e o serviço de registro de domínios.
Mas o que é que está acontecendo mesmo? Por que esta onda agora? O que eles pretendem na verdade? Vamos tentar jogar alguma luz nesta confusão e colocá-la em pratos limpos! Já que, até onde podemos enxergar, parece que ou estamos diante de um grande desconhecimento do que é a gestão dos nomes de domínios no Brasil ou estão agindo de má fé em suas colocações.
É interessante notar ainda que estamos diante da mais inacreditável seqüência de coincidências e sincronismo involuntário nas ações que mereceriam registro no Guinness Book, fora a sensação de que há algo de muito estranho e planejado para ser considerado um evento natural.
Mas, vamos lá!
Primeiro foi um que atacou a administração de domínios no Brasil exercida pela Fapesp, chamando de "monopólio", na argumentação de seu questionamento, sobre o porquê da Fapesp ter sido escolhida para tanto e, pontificando como solução, baseado no princípio federativo do Estado em que vivemos, que então este serviço deveria ser regionalizado, assim como a sua receita - questão de fundo - com as co-irmãs da Fapesp em outros estados.
Aqui fico com a dúvida sobre se estamos diante de desconhecimento ou má fé. Fazer afirmações sobre "divisão de recursos" em se tratando das retribuições sobre o serviço de registro de domínios é, no mínimo, uma grande bobagem ou uma "escada" para outra intenção não claramente explicitada.
Digo bobagem porque demonstra um inconcebível despreparo e total desconhecimento sobre como e porque a Fapesp está auxiliando o Comitê Gestor nesse assunto, bem como ignora as regras de gestão de nomes de domínios no Brasil e mesmo como ela se dá no exterior.
Felizmente, sobre este assunto não se tem uma vírgula a mais a comentar do que o exposto no brilhante artigo do professor Ivan Moura Campos, que recomendo às pessoas bem intencionadas e interessadas em conhecer como funciona este serviço. Lembrando que o dinheiro arrecadado é da Sociedade Internauta Brasileira e, para ela e em benefício dela, deve ser revertido.
Digo que poderia ser uma "escada" porque, coincidentemente ou não, esta primeira investida - argumentar cândida e erroneamente que os serviços e conseqüentemente os recursos deveriam ser partilhados entre as Fundações de Apoio a Pesquisa - poderia gerar situações bem interessantes, pois como nem todas estariam preparadas para prestar tal serviço, quem sabe um empresário amigo poderia suprir estas necessidades? Alguém com um olhar de ave de rapina aplicaria a lógica do dividir para conquistar.
Ao não dar certo aquela tentativa canhestra, vimo-nos diante de duas frentes de ataque combinadas. Uma vindo de empresas que se "acham" qualificadas para exercer as atribuições de registro de domínios e pregam aos quatro cantos que o Comitê Gestor deveria modificar os atuais critérios, pois isso seria muito bom para os usuários etc e tal! E outra vindo de quem alega se doer com o uso "indevido" do bom nome da Fapesp e prega a desvinculação desta com a gestão da Internet no Brasil, alegando que aquela participação é ilegal. Esquecendo-se, convenientemente, de que se esta suposta ilegalidade fosse constatada, funcionaria como uma auto-incriminação, pois participou de alguma forma da decisão.
Aqui o que se destaca é a ocorrência de coincidências em demasia!
Chega a ser tristemente cômico constatar que sob um verniz de empreendedorismo ou de livre iniciativa, com uma pitada de academicismo, vemos que as pessoas que estão clamando por esta modificação são parentes, amigos de longa data ou tem interesses comerciais comuns.
As empresas sob as quais se apresentam tem tanto nome em inglês - tome "sign", "bulk" prá cá e prá lá - que fica até confuso de compreender quem são essas tais empresas brasileiras e o que elas representam na verdade. Ora uma é subsidiária da outra, ora é representante de outro mais e por aí vai. A única certeza é de que elas querem faturar, não importa como e nem se para isso fazem um discurso liberalizante, quando na verdade pregam a intermediação monopolista.
Compliquei? Explico: com todo este blá-blá-blá, o que essas empresas querem é que se adote no Brasil o mesmo modelo adotado pela Network Solutions - NS para o registro de domínios genéricos mundiais ( .com, .net, .org). Por sinal, a subsidiária dela no Brasil é uma das que pregam a "privatização" do registro. A outra que prega isso eu não sei nem se é empresa mesmo ou só um subdespachante, pois representa no país um daqueles credenciados como explico abaixo.
Como funciona: a NS é a registradora-master e credencia outras empresas que fazem o interface entre o usuário e a base de dados de registros genéricos internacionais (.com, .net, .org), que é mantido pela NS, já que é uma bobagem técnica falar em bases de dados distribuídas neste caso. Ou seja, na hora de se registrar um domínio sob o .com ou .net ou .org, é preciso procurar um intermediário credenciado para se conseguir a efetivação do registro.
Em outras palavras, nenhum usuário registra domínios diretamente: tem que se valer dos serviços de despachantes. Aqui, nós optamos por acabar com os intermediários: qualquer usuário com acesso à Internet, em menos de cinco minutos, pode registrar seu domínio sob o .br, escolhendo entre as várias opções de domínios de segundo nível disponíveis no Brasil (.com.br, .ind.br, .adv.br, etc). É isso que elas querem acabar. A pretensão é de que o CG funcione também como uma espécie de registro-master e credencie empresas para prestarem o serviço ao usuário. É ou não é buscar construir um monopólio?
Vale destacar ainda que todos os provedores de acesso prestam este serviço para seus clientes. O mesmo serviço pode ser prestado por aquelas empresas, mas elas sabem que no modelo brasileiro só paga quem for bobo e, por isso, querem mudar para levar vantagem. Desculpem a gíria, mas é uma parada!
Como informação adicional, convém observarmos que a NS está sob fogo cerrado. O seu monopólio nos domínios genéricos, que foi obtido de uma forma não muito ortodoxa, está sendo revisto e foi um dos temas da reunião do ICANN nos últimos dias 12 e 13 de março em Melbourne, Austrália. Apesar de muito debatido, ainda não se tem solução em vista. Na mesa, duas propostas: ou a renovação pura e simples por mais quatro anos do monopólio, como defende a empresa, ou que ela administre apenas o .com e que outras empresas assumam a administração do .org e do .net, opção que, parece-me, prevalecerá. Para se fazer idéia da ordem de grandeza do que estamos falando, o Brasil tem cerca de 400.000 domínios e a NS administra cerca de sete vezes mais.
Voltando para que não restem dúvidas, o foco do ataque daquelas empresas está errado! Querem registrar domínios? Batam na porta do ICANN que tem lá suas regras para credenciar empresas para registro de domínios genéricos gTLDs (generic Top-Level Domains), domínios genéricos - .com., .org, .net -, que pertencem ao mundo. São regras duras e é preciso ter competência demonstrada.
Agora, querer registrar domínios sob o .br não faz o menor sentido. O .br é um outro tipo de domínio - country-code Top-Level Domains (ccTLDs), que são domínios para países. Por exemplo: Brasil é o .br, o da Argentina é .ar, e assim por diante. Quem faz o registro do ccTLDs em todo o mundo são os próprios países
É o Ministério do Exterior que registra domínios na Argentina, para se ficar no mesmo exemplo. No Brasil, quem tem esta responsabilidade é o CG e, para realizá-la, contratou a Fapesp, que aceitou colaborar por razões históricas.
Aliás, os ccTLDs também estiveram na ordem do dia da reunião do ICANN. O motivo é de que muitos do ccTLDs foram distribuídos para pessoas, e não para países (são 244 ccTLDs atualmente). O Board do ICANN vem adotando a solução de fazer um contrato entre três partes: o destinatário original do ccTLD, o governo do Pais e o próprio ICANN. Um exemplo para mostrar o tamanho da confusão: o País Basco tem um ccTLD e o governo espanhol pode não ver isso com bons olhos.
Para encerrar, temos o caso das Faculdades Integradas do Oeste de Minas (FIOM), notória organização dedicada ao ensino superior no Brasil que, para atingir seus altos objetivos educacionais, requisitou duzentos - isso mesmo - duzentos domínios. E, para tanto, apresentou vinte números de CNPJ de filiais.
(Perguntas conjuntas ao MEC e à Receita Federal: de quantas faculdades se compõem mesmo a FIOM? Quantas existem de verdade? Não seria bom olhar isso de perto, quem sabe se tem uma surpresa e se encontre algum sobrenome conhecido?)
Foram solicitados e registrados por força de liminar judicial domínios como AOL, SEXO e FESTAS diretamente sob o .br, dentre outros. Todos, como pode se ver, altamente instrutivos e pedagógicos. Longe, a quilômetros, de reles pensamentos comerciais. (a lista completa pode ser conseguida consultando a página do Registro.br)
A título de comparação, temos universidades pequenas e pouco importantes como a USP, UFRJ, UNICAMP, por exemplo, que devem reunir em conjunto cerca de vinte domínios, o que demonstra a frenética presença educacional na Internet da FIOM.
Para quem não sabe, por razões históricas de ter a Internet no Brasil começado no meio acadêmico, este sempre pode optar por se registrar diretamente sob o .br ou sob o .edu.br. Como o .edu.br foi disponibilizado depois de algumas universidades pioneiras e seus pesquisadores já estarem se utilizando de endereços sob o .br, esta prática distorcida foi tolerada, tendo gerado algumas impropriedades como Institutos de Pesquisa e Fomento também se valendo do benefício, como CNPq.BR ou IBICT.BR, por exemplo. Recentemente o CG, em conjunto com a comunidade acadêmica, estabeleceu regras de uso do .edu.br no Brasil, que podem ser consultadas na página do CG.
Em destaque, informo que a FIOM, naqueles duzentos domínios solicitados, não achou importante requerer o domínio FIOM.br. Se restava alguma dúvida sobre as intenções dos espertos administradores daquele complexo educacional, acho que se encerra com isso. A comunidade acadêmica sempre se valeu daquele privilégio, mas nunca tinha assistido a uma aberração como esta que, espero, a Justiça interrompa de vez.
Para quem está achando que o assunto FIOM não tem relação com os ataques que estamos assistindo contra a administração do Registro .br lembro que quem detém um domínio administra os domínios de nível inferior subordinados aquele. Assim "qualquer-coisa.sexo.br" é um domínio que poderia ser vendido ou "doado" pela detentora/administradora do domínio sexo.br. Daí ...!
Eu até acredito em coincidências, mas que estas não estão cheirando bem, não estão não.