UMA SOCIEDADE SEM INTERMEDIÁRIOS?

A Internet transformou muito a forma como nos comunicamos. De uma sociedade na qual os meios de comunicação de massas eram essencialmente controlados pelo Estado e por grandes empresas ou grupos empresariais, passamos a um ecossistema no qual qualquer pessoa com acesso à rede pode compartilhar suas opiniões, ideias e informações e chegar a diversos públicos sem a necessidade de nenhum intermediário. Se no rádio ou na TV temos uma situação em que poucos falam para muitos, na Internet somos muitos que podem comunicar-se com muitos. Por conta disso, alguns defendem que ela permite o surgimento de uma “cultura de participação”, na qual há poucas barreiras à expressão artística e à participação política e fortes incentivos à criação e à colaboração.

A facilidade com que hoje podemos encontrar e veicular informações, compartilhar fotos, áudios, vídeos e enviar mensagens de (quase) qualquer lugar com nossos telefones celulares parece confirmar a ideia de que não há limites para a participação nos espaços virtuais. Nossas mães e pais (por vezes até avós!), amigos de todas as partes do país ou do mundo, colegas de trabalho, ídolos e qualquer pessoa podem ser encontrados on-line. As distâncias físicas se reduzem a poucos cliques e as possibilidades de interação multiplicam-se ao infinito. Todos nós podemos ser artistas, jornalistas e aproveitar momentos de fama com os likes que recebemos de todas as partes. Além disso, podemos usar a rede para comprar produtos, conseguir trabalho e até encontrar um par perfeito, tudo sem qualquer tipo de intermediação: apenas pela nossa interação individual direta com outros indivíduos. Alguns chegaram a chamar esse fenômeno facilitado pela Internet de “desintermediação”.

MAS SERÁ MESMO ASSIM?

Para funcionar de maneira satisfatória, a Internet depende de uma série de agentes privados que operam tanto na sua infraestrutura, quanto na distribuição dos conteúdos gerados por todos os que se conectam à rede. Esses agentes vão desde as empresas de telecomunicações e provedores de conexão, responsáveis pelo acesso de cada dispositivo à Internet, até os chamados provedores de aplicação, que incluem as empresas que operam as redes sociais, os serviços de e-mail, busca, compras on-line etc. Cada um desses agentes atua segundo seus próprios interesses e regras, de modo que a comunicação que ocorre por esses meios deve de alguma forma obedecê-los. Por conta disso, em lugar de uma total desintermediação, a Internet favoreceu o surgimento de novos intermediários, que exercem funções essenciais para o seu funcionamento, com importantes consequências no nosso dia a dia.

Ao mesmo tempo em que essas empresas facilitam o exercício da liberdade de expressão na Internet, elas adquirem mais poder conforme suas plataformas se tornam mais centrais para nossa comunicação. Isso é o que ocorre hoje com as principais redes sociais, que se tornaram um espaço tão privilegiado para o intercâmbio de informações e ideias que poderíamos pensar nelas como “praças públicas digitais”, ou seja, aqueles lugares onde todos se reúnem para contar as novidades, reclamar da vida, paquerar e — por que não? — discutir política.

ACESSO À INTERNET NO BRASIL

Quando observamos pessoas utilizando celulares na maioria dos lugares que frequentamos nas grandes cidades, temos a sensação de que o acesso à Internet já é universal. Mas não é bem assim. Por mais que o acesso venha crescendo no Brasil nos últimos anos, principalmente via telefones celulares, sabemos o quanto as conexões móveis podem ser precárias ou instáveis, que as franquias de dados dos planos pré-pagos são baixas e os aparelhos limitados em relação aos usos criativos que podemos fazer por meio da rede. Segundo a pesquisa TIC Domicílios, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), apenas 54% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à Internet em 2016. Nas áreas rurais, a proporção caía para 26%. A desigualdade regional também chama atenção: enquanto no Sudeste 64% dos domicílios contavam com acesso, no Nordeste eram apenas 40%.

Dentre as pessoas que declararam ter utilizado a Internet nos três meses que antecederam a pesquisa, 93% dizem tê-lo feito por meio de telefone celular, sendo que 43% afirmam que esta é sua única forma de acesso.

Fonte: CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros – TIC Domicílios 2016.

DAS RUAS PARA AS REDES

Uma das grandes diferenças entre as praças públicas e esse “espaço público digital” construído pelas redes sociais é que, por mais que pareçam públicas, como vimos, elas são oferecidas por empresas privadas que possuem seus próprios interesses comerciais. Mais do que uma praça, podemos pensar nessas plataformas como shoppings, onde nossa entrada está condicionada à aceitação de normas que se sobrepõem aos direitos e deveres estabelecidos pelas leis brasileiras e que são definidas no espaço privado dessas organizações.

A entrada nas redes sociais está normalmente sujeita à aceitação dos chamados Termos de Uso: contratos que explicitam as condições para sua utilização. E por conta do crescente poder acumulado pelas empresas que as operam, elas podem impor uma série de regras que devem ser aceitas e obedecidas. Como num shopping, uma pessoa pode ser expulsa de redes sociais, caso não atente às suas regras.

Outra característica das redes sociais que faz com que sejam confundidas com espaços públicos é a gratuidade de muitas plataformas, inclusive as mais populares no Brasil. Do ponto de vista da infraestrutura, temos que pagar para poder nos conectar à Internet; mas para enviar um e-mail ou postar uma foto, muitas vezes o custo é zero. E isso leva à seguinte dúvida: como essas empresas sobrevivem no mercado se não é feita nenhuma cobrança pelo acesso?

O modelo de negócios dessas empresas fundamenta-se na venda de publicidade. Negócio que se mostra bastante lucrativo — basta ver as notícias sobre o crescimento de muitas dessas empresas nos últimos anos. E boa parte do interesse comercial nesse tipo de negócio se deve à promessa aos anunciantes de que o conteúdo será visto pelo público mais propenso a aceitá-lo. Quanto mais acurado for o método de previsão dessa aceitação, mais cara pode ser a propaganda e maiores os lucros das empresas.

O PREÇO DO ACESSO

Para prever melhor quem pode se interessar por determinado produto ou conteúdo, essas empresas precisam de informações que lhes permitam traçar diferentes perfis de comportamento. Por exemplo, para identificar quem pode comprar ingressos para um show de uma banda de rock internacional é preciso saber quais são as pessoas que gostam mais de rock, quais preferem MPB, quais costumam ir a shows, quais preferem ouvir discos e assistir a vídeos em casa etc. Outras informações que poderiam ser úteis diriam respeito à religião (já que seguidores de certas religiões não costumam ir a shows de rock), idade (dependendo da banda que se apresentará) etc.

Todas essas informações são valiosíssimas para negócios baseados na venda de publicidade direcionada e podem ser obtidas de diversas formas: por meio de um cadastro no qual você insere seus dados pessoais, a cada interação na plataforma (envio de conteúdos, vínculo com outros usuários, curtidas etc.), a partir da sua navegação na Web (as páginas que acessou, quanto tempo ficou em cada uma etc.), entre outras. Tudo isso é reunido para a criação de um perfil que identifica seus gostos e hábitos e que orientará os anúncios que serão exibidos para você. Quem nunca fez uma busca qualquer na Internet e depois foi bombardeado por anúncios de produtos relacionados àquela busca nas redes sociais? Seja o preço de uma passagem aérea, um livro ou outro produto qualquer? Isso é fruto dessa coleta de dados dos usuários e da previsão de que, se você buscou determinado item, pode estar interessado em um produto ou serviço específico.

Além de direcionar anúncios, algumas plataformas direcionam também os conteúdos que serão exibidos para você de forma prioritária. Podem ser desde resultados de busca, até notícias compartilhadas por seus contatos nas redes sociais. Se você prestar atenção, irá perceber que, ao entrar na rede social, não irá se deparar necessariamente com os conteúdos mais recentes em primeiro lugar, mas sim com aqueles que você potencialmente pode ter mais interesse de acordo com suas interações anteriores.

Como são os nossos dados que alimentam os sistemas de previsão de comportamentos tornando-os mais precisos — e, portanto, mais valiosos no mercado de venda de publicidade direcionada — há quem diga que esses serviços não são exatamente gratuitos, mas diminui também os estímulos que nos motivam a desenvolver novas formas de compreensão do mundo e de nós mesmos, algo que só é possível por meio do contato com a diversidade. Ambientes sociais mediados por algoritmos que fazem uma pré-seleção de conteúdos e pessoas com os quais supostamente nos identificamos são artificiais, uma vez que na vida somos o tempo todo estimulados a lidar com a diversidade de ideias e opiniões. Além de limitar a formação de uma consciência crítica sobre os fatos, essas bolhas podem estimular a polarização e propiciar o ódio às diferenças e aos diferentes.

ALGORITMOS E PERFIS

Um algoritmo consiste em uma sequência lógica de instruções que devem ser seguidas para resolver um problema ou executar uma tarefa. Uma receita culinária mostrando passo a passo os procedimentos necessários para preparar um determinado prato é uma sequência algorítmica. Um programa de computador é essencialmente um algoritmo que informa os passos específicos e em que ordem eles devem ser executados para se chegar a determinado resultado. Um algoritmo preditivo, por sua vez, inclui funções matemáticas que, aplicadas a uma massa de dados — nossos dados pessoais —, são capazes de identificar padrões, hábitos e preferências dos usuários da rede, criando perfis de comportamentos que permitirão interferir nas nossas decisões. Os algoritmos podem otimizar buscas na Internet de acordo com nosso perfil, definir e mostrar anúncios nas páginas que visitamos, decidir quais preços serão mostrados nos produtos que procuramos nas lojas on-line etc.

ESTOU NUMA BOLHA?

As grandes redes sociais estão fortemente baseadas na ideia de personalização. Elas utilizam sofisticadas ferramentas de análise de dados pessoais dos usuários para fins publicitários, mas também para a sugestão de amizades, redes profissionais e até parceiros para relações amorosas. Por meio de seus sistemas, elas selecionam as informações e notícias que receberemos com base no que imaginam que será de nosso maior interesse e que, portanto, nos fará permanecer mais tempo em suas plataformas. Muitos chamam esses espaços de “bolhas”, já que muitas vezes reproduzem incessantemente nossas próprias convicções e ideologias, criando ambientes que podem se tornar hostis à diversidade de opiniões e ideias. Além disso, com o aumento contínuo da quantidade de dados coletados pelas redes sociais sobre nossa vida pessoal, os estímulos disponibilizados nessas bolhas podem influenciar nossas decisões.

O filtro bolha pode ser percebido como conveniente por nós, já que cria um ambiente confortável e seguro para a nossa interação on-line, ao permitir que acessemos conteúdos que nos interessam em meio ao oceano de informações disponíveis na Internet. No entanto, essa redução da insegurança diminui também os estímulos que nos motivam a desenvolver novas formas de compreensão do mundo e de nós mesmos, algo que só é possível por meio do contato com a diversidade. Ambientes sociais mediados por algoritmos que fazem uma pré-seleção de conteúdos e pessoas com os quais supostamente nos identificamos são artificiais, uma vez que na vida somos o tempo todo estimulados a lidar com a diversidade de ideias e opiniões. Além de limitar a formação de uma consciência crítica sobre os fatos, essas bolhas podem estimular a polarização e propiciar o ódio às diferenças e aos diferentes.