Por uma inclusão digital para além do mercado

tipo: Documentos
publicado em: 29 de maio de 2007
por: Gustavo Gindre Monteiro Soares
idiomas:
Gustavo Gindre Monteiro Soares* - 29 de maio de 2007
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2006

A invenção da escrita inaugurou uma nova fase da humanidade, onde uma pessoa podia se comunicar com várias outras ao mesmo tempo, sem que a sua presença fosse necessária. A invenção da imprensa potencializou essa capacidade, mas ainda estávamos no mesmo universo unidirecional.

Os séculos XIX e, especialmente, XX viram nascer uma nova revolução. Pela primeira vez era possível capturar e enviar imagens, sons e imagens em movimento. Foi a revolução da fotografia, do telefone, da fonografia, do rádio, do cinema e da TV (aberta e paga).

Muita coisa mudou na capacidade de comunicação desde que o primeiro ser humano, provavelmente através de gestos abruptos e agressivos, se fez entender por outro de sua própria espécie. Mas, uma coisa permanece exatamente a mesma. Ainda estamos falando de uma característica intrínseca ao ser humano e que nos diferencia de todas as demais espécies do planeta Terra: a capacidade de produzir e transmitir conhecimentos, permitindo aos nossos descendentes não terem que começar sempre do zero, dispondo apenas de seus instintos.

Isso significa que a comunicação é um direito humano inalienável e que privar o homem da sua capacidade de se comunicar é privá-lo da sua própria humanidade.

A revolução dos meios de comunicação de massa não alterou em nada o direito humano à comunicação. Mas, pelo menos no caso brasileiro, quando olhamos para os índices de concentração percebemos que não somos uma sociedade que respeita este direito.

Cerca de 9% dos domicílios brasileiros possuem TV paga 1 . Quatro em cada cinco municípios possuem bibliotecas públicas. Mas, 68,6% dispõem de somente uma. E apenas 0,8% contam com mais de seis. Os museus só estão presentes em 17,5% dos municípios brasileiros sendo que 13,9% têm um único museu. No caso dos teatros a situação é ainda pior: 13,4% das cidades contam com teatros, sendo que 10,9% com um único espaço para as artes cênicas. Menos de um município em cada dez (8,2%) dispõem de cinemas e destes 5,6% só relacionaram uma única sala de exibição 2 .

Na radiodifusão o cenário é ainda pior. Apenas a Rede Globo, em 2002, reteve 53% do faturamento da TV aberta (que por sua vez representa 56% do bolo publicitário brasileiro). A mesma Globo ficou com 54% da audiência. Através de 138 grupos afiliados, as 6 maiores redes privadas controlam 668 veículos (TVs, rádios e jornais) 3 . Trata-se de um dos maiores oligopólios privados da comunicação existentes no mundo.

Ocorre que o século XXI nos brinda com uma nova revolução nas comunicações. Trata-se do surgimento de meios interativos, com a potencialidade de superar os limites de propriedade que impedem o livre exercício do direito humano à comunicação nas mídias "tradicionais". Agora, cada receptor pode ser também um emissor. E a potencialidade só aumenta com a chegada do cenário de convergência, onde a lógica interativa da internet vai invadindo os demais meios de comunicação, através de tecnologias como vídeo por IP e VoIP, por exemplo.

É claro que os meios de comunicação "tradicionais" continuarão sendo importantes por muito tempo e não se deve abrir mão da luta por democratizá-los. Mas, também não se pode negar que as novas tecnologias interativas são potencialmente muito mais democráticas.

Porém, uma potencialidade só se transforma em ato se algumas condições forem cumpridas. Uma semente tem em si a potência de ser uma árvore, mas precisa de terra com nutrientes, a quantidade certa de água, etc.

Duas condições são fundamentais para permitir que a potencia democrática dos novos meios interativos possa se exercer na prática.

Em primeiro lugar, é preciso evitar que o poderio dos grupos de mídia tradicionais se transfira para o cenário de convergência. Tais grupos tendem a se beneficiar da sinergia entre suas rádios, TVs, jornais, gravadoras e estúdios de cinema por exemplo 4 , para colonizar o mundo da convergência. Ao mesmo tempo, conseguem mobilizar enormes somas de recursos, produzindo grande vantagem comparativa.

Também é preciso evitar que os novos gigantes da internet (inflados pelo " venture capital " que circula pelas redes da especulação mundial) tenham o mesmo comportamento oligopolista.

Para superar este desafio é fundamental construir um processo regulatório para a convergência que seja o mais democrático possível e que envolva o maior número de atores sociais.

E é preciso garantir, também, que estas novas tecnologias estejam disponíveis para toda a população, da mesma forma com que tentamos universalizar os direitos à educação, saúde e habitação. Por universalização entendemos duas grandes políticas.

Em primeiro lugar, é preciso alfabetizar as pessoas para lidarem com essa mídia interativa. E por alfabetizar entendemos o conceito da forma como era empregado por Paulo Freire. Significa reconhecer e dar dignidade ao conhecimento que as pessoas já possuem, fazendo com que ele interaja dialogicamente com os conhecimentos dos demais 5 . Estamos falando, portanto, da construção de sujeitos e não de meros consumidores.

Em segundo lugar, é preciso garantir o acesso irrestrito 6 à infra-estrutura de banda larga. E, nesse ponto, o levantamento de indicadores realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) comprova que estamos muito distantes da pretendida universalização.

Segundo a TIC Domicílios 2006, cerca de 55% da população brasileira jamais usou um computador. E 66% nunca acessou a internet.

Apenas 19% das residências possuem computadores de mesa e 1% dispõem de notebooks. A concentração também se aplica ao plano regional. O percentual de casas com desktops é de 24,2% no sudeste, 24,6% no sul, 18,9% no centro-oeste, 8,5% no nordeste e 10,4% no norte.

Apenas 14,5% dos domicílios possuem acesso à internet. E "conforme aumenta a escolaridade e a renda do respondente, aumenta a proporção de domicílios com acesso à internet. O mesmo ocorre em relação à classe social, quanto mais alta a classe social do respondente, maior o acesso à rede".

Das residências conectadas, 49,1% utilizam acesso dial-up via telefone, 40,35% algum tipo de conexão em banda larga e, 9,2% não souberam responder. Fazendo uma simples regra de três podemos concluir que, do total de domicílios brasileiros, somente 6% possuem algum tipo de acesso dedicado à internet. Se não formos capazes de reverter este brutal cenário de exclusão, jamais poderemos utilizar a internet como uma ferramenta para garantir e ampliar o direito humano à comunicação.

A reversão se dará pela associação de uma série de políticas, muitas delas não relacionadas ao escopo deste texto, como a diminuição da taxa de juros (e do spread bancário), aumento da capacidade de investimentos por parte do Estado e uma vigorosa política industrial que vise diminuir nossa dependência tecnológica.

Outras políticas, contudo, são diretamente ligadas ao campo das comunicações. E uma delas é a revisão do marco regulatório para as comunicações, alicerçado na Lei Geral de Telecomunicações (LGT).

Depois de 10 anos, e com os números acima, já é possível dizer que a LGT fracassou na sua perspectiva de universalizar os serviços de telecomunicações. E isso basicamente por dois motivos.

Em primeiro lugar, a LGT tem como um de seus princípios a competição no mercado. Ocorre que parte da infra-estrutura não está sujeita às regras de competição, sendo monopólio natural. Por outro lado, as empresas direcionam seus investimentos para as porções mais ricas do território brasileiro. Ou seja, competição tornou-se privilégio de poucos, enquanto a maioria convive com um monopólio pouco regulado.

Em segundo lugar, o conceito de universalização da LGT é apenas potencial. Universalizar não significa garantir o acesso, mas apenas a disponibilidade da infra-estrutura para que aqueles que possuam recursos, contratem um serviço no mercado. Aos hipossuficientes (os excluídos) resta saber que estão próximos das redes, sem delas poder usufruir.

A revisão da LGT deve ter como meta a criação de um novo serviço de telecomunicações, em regime público, que permita instituir princípios como redes mesh (com técnicas de solidariedade no tráfego de dados), redes municipais (agregando colaborativamente pequenas empresas, ONGs, associações locais e o poder público) e subsídios à interconexão através de backbones considerados de interesse público (como a RNP e a massa falida da Eletronet, por exemplo).

Somente substituindo o princípio da competição e da regulação pelo mercado por conceitos como solidariedade, colaboração, descentralização e gestão participativa é que estaremos aptos a vencer a barreira da exclusão em um país onde boa parte de sua população não é constituída de potenciais consumidores de serviços privados.

Caso contrário, em nome dos vultosos lucros de poucas empresas de telecomunicações, estaremos perpetuando o modelo de exclusão social que está na raiz de nossa formação histórica.

Dessa forma, usaremos o potencial democratizante do cenário de convergência para gerar mais concentração, negando um dos mais elementares entre os direitos humanos: a capacidade que todos temos de nos comunicar com os demais seres humanos.


1 - Segundo dados da Associação Brasileira de TVs por Assinatura (ABTA).

2 - De acordo com a pesquisa "Equipamentos culturais e de lazer existentes nos municípios", do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), que procura analisar o "Perfil dos municípios brasileiros: pesquisa de informações básicas municipais de 1999", do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

3 - Dados obtidos na pesquisa "Os donos da mídia", realizada pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom).

4 - Apenas o grupo Time-Warner é dono das empresas Warner Bros, New Line Cinema, HBO, TNT, CNN, Cartoon Network, American on Line, Hannah-Barbera, DC Comics, Time-Warner Cable, People, Life, Sports Illustrated, Time, entre outras.

5 - Como todo conhecimento é produzido, em alguma medida, a partir de conhecimentos anteriores, se não formos capazes de produzir um novo marco regulatório para a propriedade intelectual, estaremos assumindo que o processo dialógico será sempre baseado em relações de mercado e, portanto, excludentes.

6 - Por acesso irrestrito compreenda-se a proibição do proprietário da infraestrutura se imiscuir no tráfego passante. Por isso, a importância da garantia da neutralidade das redes.

* Gustavo Gindre Monteiro Soares é representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil.

Como citar este artigo:
SOARES, Gustavo Gindre Monteiro. Por uma inclusão digital para além do mercado. In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2006 . São Paulo, 2007, pp. 39-42.